Pega de Boi no Mato – Fazenda Poço da Onça – Lembranças da Chapada
Petrolândia 23 de outubro de 2013
Maio de 2005. Meu tio avô e padrinho Afonso José da Silva, carinhosamente chamado de Tió, chega pra mim e diz:
– Quero fazer uma visita a minha prima e grande amiga Maria Antônia na Agrovila 2 dos Mandantes. Você me leva?
– Claro Tió.
Eu não podia perder a oportunidade de registrar o diálogo entre estes dois heróis nordestinos, fonte primária da memória viva vivida ora com alegria nos anos de chuva e fartura no Sertão Pernambucano, ora sofrida nos tempos de seca. Ele com 93 anos. Ela com 103. Ambos com uma lucidez impressionante. Estatisticamente já estariam mortos há mais de 50 anos. E assim fomos lá. No caminho ele me diz:
– Quando chegar lá aprochegue o carro na frente da porta e saia de perto pra ela não ver você.
– Sim senhor.
Eu logo imaginei o que ele ia fazer. Estacionei o carro e fiquei não muito longe observando.
-Ô de casa diz ele apoiado no portão do muro.
– Ô de fora. Quem é que má pregunte?
Responde, na bucha, Mãe Tonha aproximando-se da porta apoiando-se numa bengala. Mãe Tonha: É assim que ela era conhecida pelos amigos e parentes.
– Depois que ficou rica não conhece mais os amigos?
– Oxente? Será que tô vendo visage? É Cumpade Afonso?
– Sou eu sim. Vim tomar um café torrado em casa com rapadura e pisado no pilão como nos veios tempos.
– Veio com quem? Vim só. Óia aí a minha fubica. Pensei em vim de moto mais meus fios pediram para eu vim no meu cadilak. Fiz como os moços: Troquei o jumento pela moto. Cavalo só nas vaquejadas.
– Não mudou nada estrupiço. Continua com as mesmas presepadas.
– Se aproxegue. Vão se achegando. Se abanque que vou fazer um café bem forte.
Foram duas horas de prosa prazerosa. Mais de noventa anos revividos em poucas horas. Conversa vai, conversa vem, ela olha pra mim, adivinha o que eu quero perguntar e diz:
– Meu fio hoje aqui tá um céu. Todo mundo tem o que cumê, faça chuva faça sol. Na seca de 32 vi muita gente morrer de fome. O povo desse lugar comeu até macambira e raiz de pau de ema. Era retirante pra todo lado. Tinha umas frente de trabaio inventada pelo governo que ajudava em alguma coisa.
– Tá caducando cumade. Essas frentes só servia pra quem não precisava. Pobre que não sabia ler só servia pra morrer pro que não votava. E era quase tudo. Quanto mais pobre morto mior pus omi do pudê que aí eles ganhavam de dois lados: Se livravam de retirante e ganhava mais dinheiro com caixão de defunto. Tinha uns tal de poço artesiano mas só furavam nas fazendas dos ricos e dos políticos. Isso que o povo tem aqui hoje não foi o governo que deu não, foi os pobres que arrebanhados pelo sindicato se juntaram e tomaram conta da barragem. Ou o governo dava ou a barrage nunca terminava. Tinha uma tal de pastorá da terra e fetape que era a mulesta dos cachorro doido.
– Lá vem uncê com conversa de cumunista. Num venha dizer que num recebeu algum favorzinho quando foi suplente de vereador de Petrolândia nos anos 50.
– Vamos mudar o rumo da conversa?
– Bem pensado. Você já contou suas presepadas pro seu afiado?
– Contei muitas. Ele passa o dia todo me atazanando pra eu contar como o povo daqui vivia nos véios tempos.
– Contou a do “Boi do Poço da Onça”?
– Êta que essa eu nem alembrava mais.
– Então cumpadre conte agora o que foi que vosmicê aprontou com seus amigos vaqueiros.
– Não me alembro do ano. Só sei que era de muita fartura. Cumpade Fulô cunhado de cumpade Dandão seu pai, tinha um boi que era os pés da bêsta. Quando ainda garrote ele colocou um chocalho e sortou no mato. Foi crescendo, crescendo e o lato apertando. Ele tentou pegar várias vezes e nada. O bicho era um verdadeiro estrupiço. Era o cão em figura de boi. Ontosse ofereceu um prêmio aos vaqueiros da região. Um conto de réis a quem trouxesse o lato e o chocalho. E haja vaqueiro atrás do bicho. Mas ele sumia nas catingueiras feito caipora e o cavalo voltava estrupiado. E a notícia correu: Da Várzea Redonda ao Sobrado, do Icó aos Mandantes não se falava noutra coisa. Um dia eu saí pra campeá no meu alazão. Lembro como se fosse hoje. Lá pras banda do serrote dos campinhos dei de cara com o danado. Tava com uns 30 metros de distança. Oia pra mim, funga, cisca o chão com as patas, torce o rabo se vira e dispara. Deitei no lombo do alazão, preguei as esporas e saímos derrubando as catingueira, macambira, mandacaru, tudo que encontrava pela frente. Chego do lado, agarro no rabo do bicho e ele já ressabiado se vira. Não tive dúvida: Pulei nas pontas do bicho por cima do cangote e derrubei. Ligeiro como quem rouba puxei a peixeira e cortei o lato. Montei no alazão e vortei pra casa matutando. Ôiei pra trás. Ele parecia agradecer o que fiz balançando o rabo. Cheguei em casa, na Chapada, desapiei e coloquei o lato com o chocalho impindurado no pé de Tamarindo. Um dia de feira em Barreira, encontro com cumpade Fulô. Entramos na budega de Gersininho e começamos a jogar conversa fora em meio a várias bicadas da cahaça de Mané Dedé. Prosa vai, prosa vem como quem quer e não quer nada e fui direto aos finalmente: Cumpade que má pregunte já pegaram o boi?
– Que nada cumpade. Vai terminar morrendo inforcado.
– Eu tenho uma astúcia pra pegar o bicho.
– Qui astúcia é essa cumpade?
– Só conto quando tiver todos vaqueiros juntos.
– Então cumpade, no dia da São João, mês que vem, eu vou fazer uma taipa na minha casa. Vou convidar todo mundo da região para me ajudar. De noite cumpade Cândio vai com sua pé de bode tocar forró pra gente dançar na latada com luz de candeeiro até pegar o sol com a mão. Vai ser do jeito que o diabo gosta. Vosmicê aproveita e diz qual é a sua astúcia. Mas tem que dizer antes de começarem a tomar a cachaça de Mané Dedé de Tacaratú.
– Bem pensado. Não deixe de convidar os miores vaqueiros inclusive cumpade Nô de Delmino. Não dizem que ele é o mior? Não esqueça de convidar também os home que tem as fias donzelas mais bonitas da região.
– Não se apoquente cumpade, quer ensinar padre nosso a vigário? Disso eu entendo.
– É, entende. Entende até de paçoca de amendoim…
– Cumpade vosmicê me respeite. Eu acho que a história paçoca de amendoim foi invenção do cumpade.
– Quando foi no dia de São João logo cedo só via era gente passar na estrada para o Poço da Onça. Até Cândio, o tocador de Pé de Bode foi ajudar na taipa da casa. Eu não fui, mandei dizer por cumpade Lilinho que estava com dor de barriga. Quando o sol tava perto de se pôr, me granfinei, selei o cavalo, peguei o lato e o chocalho e finquei pé na estrada do Poço da Onça. Quando cheguei já estava tudo escuro. Amarrei o cavalo perto da estrada num imbuzeiro e andei a pé por dentro das catingueira, marmeleiro e peão. Andava bem devagar como se tivesse procurando com os pés penico no escuro. Quando tava bem perto do terreiro me agachei numa moita de pereiro. Só ouvia o furdunço lá pra dentro. Já tinham terminado a taipa da casa e as muier jogava água no chão da latada para começar o forró. Cumpade fulô tentava acender a fogueira. Peguei o chocalho e balancei forte. De repente aquele silêncio.
– Você escutou alguma coisa Fulô, pregunta sua muié Lindaura.
– Escutei mas num pode ser, num acredito.
– Balancei mais forte como se o boi tivesse deitado sacudindo musquito. Tornei a balançar. Aí foi aquele fuá, corre gente pra lá, corre gente pra cá. Cumpadre Fulô grita:
– Lindaura corre e vai abrir a porteira do curral. Vamos cercar e botar o danado prá dentro.
– Cercaram lá por fora berando a estrada. Não me apoquentei. Começaram a jogar pedra até que uma passou riscando meu páu da venta. Não tive dúvida, corrir pra dentro do curral com o chocalho tocando.
– Apois num é que o bicho entrou no curral? Grita cumpadre Binô.
– Cumpadre fulô, pra não pagar o conto de réis corre fecha a porteira do curral passa a tramela e diz: – Vocês vieram aqui pra beber e farrar ou pegar boi. Toca o fole cumpade Cândio. Todo mundo pra casa e arrasta o pé no chão. Amanhã agente vê o boi. Todas as donzelas deve alembrar que na minha casa muié não corta ninguém.
– O Forró começa enquanto cumpade Fulô acende a fugueira. Aí pulei a cerca e sair de mansinho inté onde tava o cavalo. Muntei, juntei as esporas e risquei na beira da latada. Puxei a rédea e o alazão ficou quase impé. Desapiei fui pro meio da latada e gritei:
– Peguei a fera. Taqui o lato e o chocalho. Passe pra cá o conto de réis cumpade Fulô.
– Que conversa é essa cumpade Afonso. O boi tá no Cural. Esse chucalho aí deve ser mais uma de suas tapias.
– Cumpade você acha que sou home de tapiá ninguém? Quer me desmoralizar no meio de todo mundo? Me arrespeite
– Vamos ao curral tirar a prova diz Mané Guilhermina.
– Pegaram os paus da fugueira pra alumiar e correram pro cural.
– Não abram a porteira pro boi não fugir grita cumadre Lindaura.
– Todo mundo entrou no curral: home, muié, menino, cachorro, gato,papagaio. Procuraram e nada, nem rasto. Cumpade fulô grita: – será que era o demônio? Só pode ser o laço do cão.
– Se foi coisa do demônio eu não quero saber, quero o conto de réis prometido. Quer me engabelar?
– Cumpade eu pago mas primeiro conte como foi que vosmicê pegou esse boi.
– Fui pro meio da latada e ao redor de mim tudo que era de vaqueiro famoso: os cumpades Nô de Delmino, Binô, Vininho, Aderso, Né, Pedro Soares, Mané Guilhermina, Pedro de Joana, João Soare, Lero, Fulô de Diolino, Messia, Hortenso, Pedro de Chico Moço, Anibra, Teodoro, Cisso Coelho, Elói de Macaro, João Florentino, Celso, João felix e também alguns franguinhos metidos a vaqueiros: Agamenon, Atanásio, Pedro Alves, Luiz Preto, Dandão, Zé Pequeno, Nozinho da lagoa da Areia, Jaime, Manoca e as donzelas mais bonitas da região. Olhei prum lado e pro outro dei uma chicotada no frexá da latada e escangaei:
– Tava a caminho daqui no meio da tarde quando na baixa de Mila dei de cara com o bicho. Me arrepiei todo. Do quengo ao mocotó. Não tive dúvida, drobei o cavalo e vortei troitando pra casa. Botei a perneira o gibão e o chapéu de couro. Peguei a estrada de novo. Quando cheguei na baixa de Mila sair rastejando até que dei de cara com o estrupiço. Ele olhou pra mim, fungou, jogou terra prá trás com as duas patas se virou, torceu o rabo e disparou em direção ao papagaio. Aí cumpade Agamenom que ainda era aprendiz de vaqueiro diz:
– É desse jeito mesmo que ele faz. Depois desaparece feito visage.
– Deitei na sela, preguei as esporas no alazão, e o tempo fechou. Quebra pau pra cá quebra pau prá lá até o boi dá de frente com um imbuzeiro fechado e não arrisca. Finca as patas, senta o rabo no chão e se vira. Não tive dúvida: Do jeito que vinha pulei no cangote do bicho segurando nos chifres. Aí compadres ele deu um rapapé prá cima tão danado que fui cair sentado em cima do imbuzeiro. Apôis o estrupiço em vez de correr ficou oiando pra eu com uma cara que parecia que tava vendo o satanás.
– Vige meu padim padim Ciço. Isso não é boi não, é o satanás mermo diz cumpade Conrrada.
– Mas eu não me amofinei. Se eu não fosse muito macho tinha mijado nas calças. Não cochilei: Vuei e cair de novo em cima do chifre do bicho. O baque foi tão grande que ele enfiou o fucinho no chão e caiu dos quartos. Puxei a pexeira e cortei o lato. Ele deu de novo outro rapapé tão ispritado que eu vuei e cair montado no alazão. Preguei as esporas e fui pra casa. Tomei um banho no poço, botei a melhor roupa: um paletó de gasimira branco, passei perfume dorli e vim receber meu conto de réis pra gastar com presentes pras minhas admiradoras. Olhei para os lados tava todo mundo de queixo caído oaindo uns pros outros. Aí minha sobrinha cumade Agarina grita de lá:
– Tavendo meu vei, esse sim é que é vaqueiro.
– Como eu não sou atroado não deixei cumpade Nô arresponder se não a vaca ia pro brejo: Puxa o fole cumpade Cândio e vamos dançar até pegar o sol com a mão. Agarrei uma pelos quartos que a pueira cubriu. Tudo que era de moça só queria dançar comigo. Com o conto de réis paguei cachaça de Mané Dedé a noite toda pra todo mundo até amanhecer. Até os cavalos amanheceram bêbados, menos eu que não sou idiota. Eu ia deixar de dar asistença a muierada.
– Vôte cumpadre, eu só conhecia essa história até quando o boi entrou no curral. Isso não é qualidade de gente. Quanto mais fica véio pior fica.
OBS:
1-O Episódio do boi de fato aconteceu. A história é real até a entrada do boi no curral e conhecida de toda população contemporânea aos dois personagens. A partir daí é ficção inspirada em muitas histórias que ele contava.
2-Maria Antônia (Mãe Tonha) faleceu em 2009 aos 107 anos de idade.
3-Afonso José da Silva (Tió) faleceu em 2011 aos 99 anos.